Primeira pedrada
1.
Depois direi mal de ti.
O tempo lá fora não se incomodará;
O vento dirá lenga-lengas
que os lobos lhe ensinaram;
E o sol não derreterá gelos.
O frio, porém, sim.
O frio derreterá as palavras
Num copo de vodka
E num cigarro imaginário
-Desde que deixei de fumar
ando muito mais viciado-
E continuarei a dizer mal de ti.
Depois tu dirás
mal de mim.
Abrutalharás o indicador.
O tempo impávido fará corridas
Com gotas de chuva nas vidraças;
O sol esconder-se-á por trás das cadeiras
E os olhares presentes no café
Poisarão temerosos em ti.
O calor esquentar-te-á o café
E acenderás até nele o teu cigarro
-Um verdadeiro, pois para ti
tudo é muito mais real-
E deixarás de dizer mal de mim.
Eu continuarei a dizer mal de ti,
Pois não compreendo porquê,
Porque é que chamar-te amor
Há-de ser o busílis da discórdia.
2.
Vou pela estrada afora.
Vou pela rua abaixo.
Entro pela casa adentro.
Ninguém está.
Como se o mundo dissera
Adeus.
3.
Ponho-te a língua de fora.
-A minha-
E fico a pensar:
Quem inventou tal careta?
“Pôr-te a língua de fora!”
-A minha-
Alguém que não sabia usar a violência
Ou desconhecia a gramática.
Fico-me por esta
E ponho-te a língua de fora,
Pois com isso até sorris.
4.
Olha,
Posso levar-te a ver o mundo
Pois sou ceguinho?
Ai esta mão que me deste
É brisa que vem dos trópicos;
Morna, suave, balouçante como o mar,
E sinto-lhe areias macias.
Deixa-me ficar na sua concha
E põe o mundo de lado,
Pois quem possui tal ternura
É dono do Universo.
5.
E assim se encontraram
Três aleijados da alma:
A mais que B,
B mais que C
E C mais que A.
Vá lá a matemática explicar isto.
Ora,
Quando a língua não o faz.
6.
Ó coisita, dás-me um beijito?
Ai, não?
Pois quando de mim os quiseres
Nem ponta de pelo hirsuto
Que a máquina de barbear
Por sobre o lábio deixou
Eu te darei.
E já não gosto mais de ti.
Olha, vês?, viro-te as costas!
E esse teu sorriso diz-me
Que não te importas.
Não sei se por eu virar as costas
Se por não gostar mais de ti
Ou se por não te querer dar
picadelas com a barba.
Olho-te então de soslaio
À espera que mo digas...
E tu vens...
picar-te nos lábios.
7.
Estou perdido de raiva.
Os solavancos do autocarro
Arrastam-me a escrita para hieróglifos.
Um safanão dum lado,
Um safanão do outro.
O “A” que se espalha pela linha fora,
Um “M” que escorre folha abaixo,
Um “O” de Ó diabo que sai da boca
E a travagem brusca impede que caia no papel,
E um “R” de rais ma partam
Perdido de raiva.
8.
Se da primeira vez
Tudo pareceu de vento em popa:
O frenesim interior,
O tremor exterior
E o sorriso das cantilenas;
Hoje tudo me parece avesso.
Não dormi.
Com tanto por fazer nada fiz.
Até esqueci a máquina de lavar roupa
Que goteja tal clepsidra carrasca.
E quando horas de erguer
E a preguiça me fincou sobre o lençol
Eu notei que me atrasava.
E a torneira gotejava cruel.
Quando me levantei no embalo do atraso
Escorreguei na cozinha,
Dei de ventas com o frigorífico;
Insultei-o muito imoral
E maldisse a minha vida.
Sem ter barcaça por perto
Nem botas de cano alto,
Chapinhei corrente acima
Até às fontaínhas da desgraça;
Vedo o ping-ping traidor,
Afogo o rio com a esfregona
E vejo o tempo a fugir-me.
Fujo eu dele, pois então?,
Atiro pra trás das costas
Tudo o que me está agreste,
Desço a rua, apanho o “bus”.
Se o destino quiser
Andar comigo hoje aos tombos
Dou-lhe uma tal canelada
Que o manco pra toda a vida.
Se o vires passar de muletas,
Já sabes donde ele vem.
9.
Hoje estou com muito mais medo de ti.
Hoje sabes de mim e eu nem o queria.
Gostaria de ser a interrogação eterna
Que o filósofo põe na retina,
O desconhecido que fascina
E impele para a aventura.
Hoje tenho muito mais medo de ti
Porque estou já descarnado
E até o sanar das feridas mais dói.
Mas quero ver-te, cego, eu sei.
10.
A temperatura é amena,
Tranquila a paisagem
E o casario apressado acena “adeuses”.
O altifalante urra:
-A próxima paragem...
E o coração pára,
Embate nas paredes como que
A querer furá-las.
Trago remoinhos no peito.
Mais um arranque, mais uma paragem.
Uma ave voa rasante.
Anuncia chuva dizem.
Quem me dera anunciar tambem...
Servir para alguma coisa.
Uma galinha olha-me trocista.
Donde raio me conhecerá ela
Para de mim fazer tal troça?
O comboio não deixa que lho pergunte.
Arranque
Paragem-arranque.
As árvores nem folhas largam
E nem há brisa que as ajude.
Tudo tão tranquilo
Como pictoresca paisagem
Numa mudez de assombros.
Paisagens assim tão mudas
Ensurdecem-me os ouvidos.
Sim, o silêncio põe-me surdo.
Ouves-me? Cá o dizia.
Quando não há quem fale
Nada ouvimos,
Ensurdecemos aos poucos
E quando nos vem quem fale...
11.
Há tempos que não escrevia
Assim, tão à tiracolo,
Assim como quem nem escreve.
Estou a voltar ao que era dantes
Sem nunca de lá ter saído.
Por isso aguardo ansioso o mês de Março
E o meu casal de cabritos.
Depois vou ser criança e brincar,
Lá fundo, no valeiro, longe dos homens
E dos telemóveis que capam conversas.
Na altura estarão as salamandras
já crescidas,
Os nabos por certo já apanhados
E as favas de vagem prenhe.
E sei que, então, aprenderei
Poemas mais lindos.
11.a.
Daqueles que lacrimejam
Alegrias por tão belos.
Mas não me esquecerei de ti.
Junto ao poço
Uma roseira velhinha
Que floresce com o mesmo rubro de outrora.
O que será que faz
As roseiras florirem até ao fim?
Os homens florescem uma vez e basta.
Depois murcham
Até aos seculares anais da História.
Eu não quero murchar
Quero ser roseira até ao fim.
Assim, como aquela à beira-poço.
Parece ter nascido ali
Para nunca murchar
E se tal se vier a dar,
Dar um passo ao lado.
12.
Jura não revelares meu segredo.
Jura que em ti guardas
As penas que aqui confesso,
As dores em que me vejo
E o nome de quem me fere.
Jura que a ninguem contarás
Os fados que aqui canto,
Os poemas que aqui escrevo
E os suspiros que por cá dou.
Jura!, Pedra muda!
13.
Vóim!
Uma onomatopeia que me trespassa a memória
Sem que eu tenha memória dela.
Vóim!
Teima ela.
Eu dou voltas aos caixotes,
Aos livros e cadernos,
Até à revista antiga
Que um descuido guardou.
Vóim!
Sinceramente,
Consegues explicar isto?
E ela vai-se,
Elástica, saltitando,
Porta afora
Sem sequer dizer adeus.
Vóim, vóim, vóim.
Fica-me nas mãos um caderno
E um poema dele escorre.
Bem mais sem sentido.
14.
Da janela do comboio
Li mesmo agora: Gorlitz.
Como raio veio parar
Tal estação a Oiã?
Alguém que brinca aos grafismos
Ou foi uma alucinação?
Caramba, quero ir para Aveiro
E não fugir de ti!
15.
As sombras descem pelo outeiro
No cantar que águas invernais entoam.
O chilreio duma ave migratória
Espanta silêncios.
Eu e ela;
Ela perdida, esquecida da rota,
Eu achado, perdido de rumos.
O sol, brusco, cai para além.
A ave pia, lancinante,
Dolorida...
Ah, se eu fosse caçador
Para lhe acabar com a dor...
Não penso:
Ah, se eu pudesse nidificar
Para lhe oferecer guarida...
Sou noite
No valado onde as salamandras “ovoviparem”
E as aves migratórias perdem o tino;
Lá no cume
Ouvem-se cervejas e “melros”
-Os melros no Tovim são copos de tinto-
E gostaria de saber subir colinas,
Chegar ao povoado e beber melros
Mas fico. Insaciável.
A beber chilreios de ave
Perdida.
16.
Hoje passeei um cão
O que poderá não ser mais que isso:
Passear um cão.
Mas hoje
eu
passeei um cão.
E ele urinou nos cantos,
Nas bermas e nas relvas,
Onde quis.
O que tambem não é mais do que isso:
Urinar.
Mas hoje
eu
passeei um cão
Que urinou.
Ontem,
Ou mais dia menos dia,
Conversei com alguem,
O que poderá apenas ser isso:
Conversar com alguem.
Mas o cão chama-se Gorki,
Desse alguem não lembro o nome.
17.
O corpo esculpido de Vénus,
Não vem espojar-se comigo.
Os meus lençois são virgens
E os cobertores se de amores sabem,
É de outras noites que não as minhas,
-Pois são velhinhos-
Quem sabe, testemunhas de mim mesmo.
E adormeço familiarizado.
18.
Se eu desse um biqueiro no sol,
Achas que choveria?
E se desse dois tabefes na chuva,
Achas que faria sol?
-E se tu estivesses quieto?,
Não seria melhor?!!!
Decerto que sim,
Mas continuaria sem respostas.
19.
Vamos pensar
-Como o senhor Keuner-
Que não pensamos;
Vamos supor
Que o que pensamos
É o que vivemos
De momento.
Nunca mais teríamos pensamentos
Porque pensaríamos sempre o primeiro
E viveríamos apenas esse.
Acho que estou a pensar
Contrário ao senhor Keuner.
20.
As palavras coníferas do meu vocabulário
Têm folhagem caduca.
Por isso os meus poemas não prestam.
Não é porque eu seja um mau poeta!
Mau poeta é aquele que tem pinheiros sintéticos.
Dos quais a faúlha também cai
E sobre a qual ele nunca escreveu um verso.
Eu sou um bom poeta!
-Gaba-te cesto!-
Os meus poemas é que não prestam.
Ninguem faz boas omeletes com ovos podres.
21.
A Rosa é boa poetisa
Porque tem bons versos
Que moldam bons poemas.
Eu tenho versos
E tenho poemas
E sou poeta.
Agora vejo
Que já só me falta o adjectivo..
22.
Cheguei a Coimbra com a penúria de sempre,
Os bolsos rotos e moedas algures a tilintar;
E vou-me embora
Sem traçado nem bifana,
Como quem entra em igreja
E se não benze.
Não que me importe a pobreza,
Fui nela nado e criado;
Chateiam-me sim os dizeres
Sobre o que eu poderia ser.
Eu sou!, ó gentes!
Caramba, rais ma partam se não sou!
Esclareço e tal o meu verso,
Dou fim ao pobre poema,
Vou pró Tovim; adormeço.
-Amanhã o mesmo tema...-
22.a.
Levanto os olhos primeiro,
Que o corpo agrilhoado
Nas correntes da preguiça
Manda a vontade ao diabo.
E lá fora está tão frio.
Vejo a nódoa que a caliça
Na queda com a humidade
Vai picasseando em mural
E penso que rico dia!,
Mesmo fresquinho: a pintar.
Mas não pinto.
Nem me mexo!
Ali ao lado em cadeira
-Que um dia pus ao jeito-
Um portátil escancarado
Que a noite, tardias horas,
Não vislumbrou apagar.
E que tal um “fâquebuk”?
Um “Farmville” é porreiro...
Que o seja ou não o seja
-não é!-
É hora de levantar
Os olhos, e nada mais.
Estão as couves já à espera
E os nabos a grelar;
Nem sei bem se as aves
Por mim esperam.
Sei do seu grande alarido quando chego.
Vou ora supô-lo regozijo,
Alegria de me verem.
E pronto! Vêem?!
Para quê pensar na penúria?