terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Perdido de Raiva



Primeira pedrada

1.
Depois direi mal de ti.
O tempo lá fora não se incomodará;
O vento dirá lenga-lengas
que os lobos lhe ensinaram;
E o sol não derreterá gelos.
O frio, porém, sim.

O frio derreterá as palavras
Num copo de vodka
E num cigarro imaginário
-Desde que deixei de fumar
ando muito mais viciado-
E continuarei a dizer mal de ti.

Depois tu dirás
mal de mim.
Abrutalharás o indicador.
O tempo impávido fará corridas
Com gotas de chuva nas vidraças;
O sol esconder-se-á por trás das cadeiras
E os olhares presentes no café
Poisarão temerosos em ti.

O calor esquentar-te-á o café
E acenderás até nele o teu cigarro
-Um verdadeiro, pois para ti
tudo é muito mais real-
E deixarás de dizer mal de mim.

Eu continuarei a dizer mal de ti,
Pois não compreendo porquê,
Porque é que chamar-te amor
Há-de ser o busílis da discórdia.

2.
Vou pela estrada afora.
Vou pela rua abaixo.
Entro pela casa adentro.

Ninguém está.
Como se o mundo dissera
Adeus.

3.
Ponho-te a língua de fora.
-A minha-
E fico a pensar:
Quem inventou tal careta?
“Pôr-te a língua de fora!”
-A minha-

Alguém que não sabia usar a violência
Ou desconhecia a gramática.

Fico-me por esta
E ponho-te a língua de fora,
Pois com isso até sorris.

4.
Olha,
Posso levar-te a ver o mundo
Pois sou ceguinho?

Ai esta mão que me deste
É brisa que vem dos trópicos;
Morna, suave, balouçante como o mar,
E sinto-lhe areias macias.
Deixa-me ficar na sua concha
E põe o mundo de lado,
Pois quem possui tal ternura
É dono do Universo.

5.
E assim se encontraram
Três aleijados da alma:
A mais que B,
B mais que C
E C mais que A.
Vá lá a matemática explicar isto.

Ora,
Quando a língua não o faz.

6.
Ó coisita, dás-me um beijito?
Ai, não?
Pois quando de mim os quiseres
Nem ponta de pelo hirsuto
Que a máquina de barbear
Por sobre o lábio deixou
Eu te darei.

E já não gosto mais de ti.
Olha, vês?, viro-te as costas!

E esse teu sorriso diz-me
Que não te importas.
Não sei se por eu virar as costas
Se por não gostar mais de ti
Ou se por não te querer dar
picadelas com a barba.

Olho-te então de soslaio
À espera que mo digas...

E tu vens...
picar-te nos lábios.


7.
Estou perdido de raiva.
Os solavancos do autocarro
Arrastam-me a escrita para hieróglifos.

Um safanão dum lado,
Um safanão do outro.

O “A” que se espalha pela linha fora,
Um “M” que escorre folha abaixo,
Um “O” de Ó diabo que sai da boca
E a travagem brusca impede que caia no papel,
E um “R” de rais ma partam
Perdido de raiva.

8.
Se da primeira vez
Tudo pareceu de vento em popa:
O frenesim interior,
O tremor exterior
E o sorriso das cantilenas;
Hoje tudo me parece avesso.

Não dormi.
Com tanto por fazer nada fiz.
Até esqueci a máquina de lavar roupa
Que goteja tal clepsidra carrasca.

E quando horas de erguer
E a preguiça me fincou sobre o lençol
Eu notei que me atrasava.
E a torneira gotejava cruel.
Quando me levantei no embalo do atraso
Escorreguei na cozinha,
Dei de ventas com o frigorífico;
Insultei-o muito imoral
E maldisse a minha vida.

Sem ter barcaça por perto
Nem botas de cano alto,
Chapinhei corrente acima
Até às fontaínhas da desgraça;
Vedo o ping-ping traidor,
Afogo o rio com a esfregona
E vejo o tempo a fugir-me.

Fujo eu dele, pois então?,
Atiro pra trás das costas
Tudo o que me está agreste,
Desço a rua, apanho o “bus”.

Se o destino quiser
Andar comigo hoje aos tombos
Dou-lhe uma tal canelada
Que o manco pra toda a vida.

Se o vires passar de muletas,
Já sabes donde ele vem.

9.
Hoje estou com muito mais medo de ti.
Hoje sabes de mim e eu nem o queria.
Gostaria de ser a interrogação eterna
Que o filósofo põe na retina,
O desconhecido que fascina
E impele para a aventura.

Hoje tenho muito mais medo de ti
Porque estou já descarnado
E até o sanar das feridas mais dói.

Mas quero ver-te, cego, eu sei.

10.
A temperatura é amena,
Tranquila a paisagem
E o casario apressado acena “adeuses”.
O altifalante urra:
-A próxima paragem...
E o coração pára,
Embate nas paredes como que
A querer furá-las.
Trago remoinhos no peito.

Mais um arranque, mais uma paragem.
Uma ave voa rasante.
Anuncia chuva dizem.
Quem me dera anunciar tambem...
Servir para alguma coisa.

Uma galinha olha-me trocista.
Donde raio me conhecerá ela
Para de mim fazer tal troça?
O comboio não deixa que lho pergunte.

Arranque

Paragem-arranque.

As árvores nem folhas largam
E nem há brisa que as ajude.
Tudo tão tranquilo
Como pictoresca paisagem
Numa mudez de assombros.

Paisagens assim tão mudas
Ensurdecem-me os ouvidos.
Sim, o silêncio põe-me surdo.
Ouves-me? Cá o dizia.

Quando não há quem fale
Nada ouvimos,
Ensurdecemos aos poucos

E quando nos vem quem fale...

11.
Há tempos que não escrevia
Assim, tão à tiracolo,
Assim como quem nem escreve.

Estou a voltar ao que era dantes
Sem nunca de lá ter saído.

Por isso aguardo ansioso o mês de Março
E o meu casal de cabritos.

Depois vou ser criança e brincar,
Lá fundo, no valeiro, longe dos homens
E dos telemóveis que capam conversas.

Na altura estarão as salamandras
já crescidas,
Os nabos por certo já apanhados
E as favas de vagem prenhe.

E sei que, então, aprenderei
Poemas mais lindos.

11.a.
Daqueles que lacrimejam
Alegrias por tão belos.

Mas não me esquecerei de ti.

Junto ao poço
Uma roseira velhinha
Que floresce com o mesmo rubro de outrora.

O que será que faz
As roseiras florirem até ao fim?
Os homens florescem uma vez e basta.
Depois murcham
Até aos seculares anais da História.

Eu não quero murchar
Quero ser roseira até ao fim.
Assim, como aquela à beira-poço.
Parece ter nascido ali
Para nunca murchar
E se tal se vier a dar,
Dar um passo ao lado.

12.
Jura não revelares meu segredo.
Jura que em ti guardas
As penas que aqui confesso,
As dores em que me vejo
E o nome de quem me fere.

Jura que a ninguem contarás
Os fados que aqui canto,
Os poemas que aqui escrevo
E os suspiros que por cá dou.

Jura!, Pedra muda!

13.
Vóim!
Uma onomatopeia que me trespassa a memória
Sem que eu tenha memória dela.
Vóim!
Teima ela.

Eu dou voltas aos caixotes,
Aos livros e cadernos,
Até à revista antiga
Que um descuido guardou.
Vóim!
Sinceramente,
Consegues explicar isto?

E ela vai-se,
Elástica, saltitando,
Porta afora
Sem sequer dizer adeus.
Vóim, vóim, vóim.

Fica-me nas mãos um caderno
E um poema dele escorre.
Bem mais sem sentido.

14.
Da janela do comboio
Li mesmo agora: Gorlitz.

Como raio veio parar
Tal estação a Oiã?

Alguém que brinca aos grafismos
Ou foi uma alucinação?

Caramba, quero ir para Aveiro
E não fugir de ti!

15.
As sombras descem pelo outeiro
No cantar que águas invernais entoam.
O chilreio duma ave migratória
Espanta silêncios.

Eu e ela;
Ela perdida, esquecida da rota,
Eu achado, perdido de rumos.

O sol, brusco, cai para além.
A ave pia, lancinante,
Dolorida...
Ah, se eu fosse caçador
Para lhe acabar com a dor...

Não penso:
Ah, se eu pudesse nidificar
Para lhe oferecer guarida...

Sou noite
No valado onde as salamandras “ovoviparem”
E as aves migratórias perdem o tino;

Lá no cume
Ouvem-se cervejas e “melros”
-Os melros no Tovim são copos de tinto-
E gostaria de saber subir colinas,
Chegar ao povoado e beber melros
Mas fico. Insaciável.
A beber chilreios de ave
Perdida.

16.
Hoje passeei um cão
O que poderá não ser mais que isso:
Passear um cão.
Mas hoje
eu
passeei um cão.

E ele urinou nos cantos,
Nas bermas e nas relvas,
Onde quis.
O que tambem não é mais do que isso:
Urinar.

Mas hoje
eu
passeei um cão
Que urinou.

Ontem,
Ou mais dia menos dia,
Conversei com alguem,
O que poderá apenas ser isso:
Conversar com alguem.

Mas o cão chama-se Gorki,
Desse alguem não lembro o nome.

17.
O corpo esculpido de Vénus,
Não vem espojar-se comigo.
Os meus lençois são virgens
E os cobertores se de amores sabem,
É de outras noites que não as minhas,
-Pois são velhinhos-
Quem sabe, testemunhas de mim mesmo.

E adormeço familiarizado.

18.
Se eu desse um biqueiro no sol,
Achas que choveria?
E se desse dois tabefes na chuva,
Achas que faria sol?

-E se tu estivesses quieto?,
Não seria melhor?!!!

Decerto que sim,
Mas continuaria sem respostas.

19.
Vamos pensar
-Como o senhor Keuner-
Que não pensamos;

Vamos supor
Que o que pensamos
É o que vivemos
De momento.

Nunca mais teríamos pensamentos
Porque pensaríamos sempre o primeiro
E viveríamos apenas esse.

Acho que estou a pensar
Contrário ao senhor Keuner.

20.
As palavras coníferas do meu vocabulário
Têm folhagem caduca.
Por isso os meus poemas não prestam.

Não é porque eu seja um mau poeta!

Mau poeta é aquele que tem pinheiros sintéticos.
Dos quais a faúlha também cai
E sobre a qual ele nunca escreveu um verso.

Eu sou um bom poeta!
-Gaba-te cesto!-
Os meus poemas é que não prestam.

Ninguem faz boas omeletes com ovos podres.

21.
A Rosa é boa poetisa
Porque tem bons versos
Que moldam bons poemas.

Eu tenho versos
E tenho poemas
E sou poeta.

Agora vejo
Que já só me falta o adjectivo..

22.
Cheguei a Coimbra com a penúria de sempre,
Os bolsos rotos e moedas algures a tilintar;
E vou-me embora
Sem traçado nem bifana,
Como quem entra em igreja
E se não benze.

Não que me importe a pobreza,
Fui nela nado e criado;
Chateiam-me sim os dizeres
Sobre o que eu poderia ser.

Eu sou!, ó gentes!
Caramba, rais ma partam se não sou!

Esclareço e tal o meu verso,
Dou fim ao pobre poema,
Vou pró Tovim; adormeço.

-Amanhã o mesmo tema...-

22.a.

Levanto os olhos primeiro,
Que o corpo agrilhoado
Nas correntes da preguiça
Manda a vontade ao diabo.
E lá fora está tão frio.

Vejo a nódoa que a caliça
Na queda com a humidade
Vai picasseando em mural
E penso que rico dia!,
Mesmo fresquinho: a pintar.
Mas não pinto.
Nem me mexo!

Ali ao lado em cadeira
-Que um dia pus ao jeito-
Um portátil escancarado
Que a noite, tardias horas,
Não vislumbrou apagar.
E que tal um “fâquebuk”?
Um “Farmville” é porreiro...

Que o seja ou não o seja
-não é!-
É hora de levantar
Os olhos, e nada mais.

Estão as couves já à espera
E os nabos a grelar;
Nem sei bem se as aves
Por mim esperam.

Sei do seu grande alarido quando chego.
Vou ora supô-lo regozijo,
Alegria de me verem.
E pronto! Vêem?!

Para quê pensar na penúria?

4 comentários:

  1. Última página

    Aqui te inscrevo.
    Serás, para sempre,
    o Príncipe
    e sentirás
    a este chamamento.

    Aqui te deixo,
    inatingível.
    Por descobrir,
    a magia de te humanizar.
    Quero-te assim,
    sem entender.
    A mão estendida,
    a um palmo de te ter.

    Fica longe,
    donde me não possas ver.
    E nunca terei de escolher:
    o mistério ou a solução.

    Guarda-me este segredo
    na tua mão, fechada.
    Se a abres,
    não tens nada.

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  2. Silêncio cortante

    De duas paralelas
    Sai a flecha
    apontada ao silêncio.
    Não é dor.
    O sangue corre
    fluido nas veias
    calmamente.

    Horas avulsas

    Levem daqui
    A viagem pelo verde
    dum Inverno que inventei
    velha casa na floresta
    todos os papéis pelo chão.

    O meu foi
    Fazer-me igual
    Descobrir redonduras
    Nos atapetados caminhos
    E acenar-te, invenção.

    Mas falavas.

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  3. Comentários anónimos não são muito do meu agrado. Agradecia que os dispensassem.

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  4. Obrigado pelos versos. E vai desculpando as pedradas. ;) Aproveita as pedras, faz calçadas;
    planas! Não fiquem elas com dor nas costas por subirem... E pra elas, abre janelas.

    àparte isso. Gosto de ti, porra!

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