quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

T O V I M Tovim (de Cima)

T O V I M

Tovim (de Cima)

1.
O sol esbate-se pela encosta,
Lambe as paredes dos prédios
E atira sombras pelas ruas.

O vento revolteia-se, frio;
Recusa verões quando o inverno acontece
E rodopia pelos cantos,
Varre de gelo as paredes
Que o sol teima em lamber.

Em mim até o tempo resmunga,
Até o gelo se derrete,
O vento pára e o sol se esconde.

Viro-me às avessas.
Quero antes o tempo lá de fora.

2.
Lembro as valetas de outrora
E os barcos de papel,
De carcódia ou de cana;
Lembro os pés descalços
E as calças com fundilhos;
O caderno escolar
E até os versos primeiros:

Um dia em mim nascerás flor;
Vou-te regar com beijos.

Tu não acreditas
E o tempo murcha-te.

2a.
Lembro a professora e o livro
-o proibido-
Lembro os versos e o medo
Dos vocábulos gigantescos;
Do lasso -não era laço, juro-
Que eu não pude entender.

Lembro o alcatrão abaulado
E as lascas de pedra rosa,
Ou caco de vaso ou telha,
Lembro tudo quanto dava
Para um risco traçar.

E lembro os dias de rio,
Das espigas verdes do milho,
Dos melões, uvas, laranjas,
De tudo o que nós roubámos
Para atenuar o caminho.

Lembro até os açoites bravos
A castigarem-me a infância.

De nada serviram, pai!,
Só me aumentaram os dias
Em que quero ser criança.

3.
A internet abre fissuras
Por onde tu espreitas,
Oculta por trás de fotos
Que não as tuas.

Falas de interesses que não interessam
E gostas até de livros que a boa crítica gosta,
Dos filmes que estão na berra
E vês o “gato fedorento” por uma intenção política.

Eu faço quase tudo isso
-sem foto-,
Falo do que me interessa e do mais desinteressante,
E gosto de livros – se gosto! - que a crítica nunca leu.
E televisão não vejo,
Vejo o drama desta terra,
Deste Tovim que já viu
Muito poema nascer...
E nem consegue ser verso.

Olha mando-te daqui um smiley: :p

4.
Ontem li Espanca
E espreitei os pulsos do Carneiro
Ainda pulsantes, sem lenhos.

Olhei o quadro do Paulo,
Peguei no livro do Cintra
E li qualquer coisa ao acaso.

Anda para aí tanto artista,
Tanto pintor e poeta,
Tanto, tanto, tanto...

Que se um dia der por mim
Numa parede qualquer
É porque lá existe um espelho.

5.
Todos nós temos memórias;
Umas mais esquecidas,
Outras mais lembradas.

Dos carros de rolamentos
E do roubo das tangerinas.

Um verão a atazoar e os pés descalços;
Os calções de calças velhas,
Mais fundilho que calção;
Camisola de curta manga:
Tronco nu não faz abada.

O buraco no silvado
E o arrojo de criança.

Roubo! De fruta.

Crime que a GNR, senhora de outrora,
Não perseguia.
1969
Perseguia na altura
Estudantes e outros que sim
A dizer não.

Até as laranjas do pide não escapavam.

Os cães de então eram vadios,
Eram crianças,
Éramos nós.

Latidos largos, sonoros,
Gargalhadas.

Tovim.

Atirado ali pela encosta
Que Mário Braga “cercou”

Tovim.

Na memória.
A tua semana passada.
A minha infância.

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